«Construiu um verdadeiro império sozinha e as más línguas garantem que é uma das mulheres mais poderosas de Portugal. Ao "La Siesta" vão magistrados, deputados e jogadores de futebol.
Na noite do último sábado chegaram à pequena vila de Vale de Santarém (algures entre o Cartaxo e Santarém - é procurar no mapa) oito autocarros. Os clientes da Kikas chegam, de todo o país, organizados em excursões. Ao final da noite, a dona da casa de alterne mais famosa de Portugal - o bar La Siesta - deita contas à vida e contabiliza mais de 2800 entradas. Ainda assim, solta um desabafo: "Correu bem, mas há dias melhores." Nas noites fortes não sobra um único espacinho para estacionar na vila e há clientes que são obrigados "a andar três quilómetros a pé" para chegar ao estabelecimento.
A Kikas é a Maria da Conceição, uma mulher de 51 anos que já foi rainha da sucata, passou pela cadeia de Tires e agora é rainha da noite no Ribatejo. Num espaço de oito anos construiu, sozinha, um verdadeiro império. Reza a lenda que a casa é frequentada por altos magistrados, deputados, jogadores da bola, muita gente conhecida e influente. Sobre isso a Kikas não se descose e não levanta sequer uma pontinha do véu: "Respeito muito quem cá vem", limita-se a dizer - enquanto abre, em menos de nada, uma garrafa de água que a jornalista não conseguiu abrir por falta de força. À chegada ao La Siesta, depois de o encontro ter sido marcado dias antes por telefone, a Kikas olha-nos de cima a baixo e pergunta, num tom de poucos amigos: "Mas afinal o que é que você quer comigo?" Fotógrafo e jornalista engolem em seco. Maria da Conceição, voz gasta e olhar demasiado forte, intimida. No entanto, uma hora depois de começar a entrevista, desata a chorar baba e ranho em cima do gravador, enquanto desfia, pela primeira vez, a história da sua vida a um jornal.
A Kikas montou a casa de alterne em menos de 48 horas. Tinha um restaurante, trabalhava 22 horas por dia e adormecia quase sempre de exaustão em cima de uma arca frigorífica. Até que um dia decidiu que havia de abrir uma "casa de meninas". Logo ela, que sempre foi contra a prostituição. "Pela educação que tive, pela maneira como a sociedade olhava para as mulheres da vida", recorda. A Kikas pensa e executa muito depressa. Foi assim em todos os projectos em que se meteu - além da casa de alterne, Maria da Conceição tem uma discoteca no Cartaxo, um ginásio e, desde o final do mês passado, um restaurante, colado ao bar. Até ao final do ano conta abrir mais um espaço: uma casa para acolher crianças abandonadas.
A perda da inocência No dia em que decidiu que havia de ser empresária da noite arredou todas as mesas do restaurante e sentou-se à máquina de costura. Costurou cortinados, véus e toalhas de mesa. Pouco depois chegavam as primeiras três raparigas - que já andavam na vida e trabalhavam em bares da zona -, trazidas por um homem que costumava almoçar no restaurante e era frequentador do alterne.
Ainda não tinha passado uma semana e a Kikas já queria desistir, aquilo não era para ela. Maria da Conceição, que nasceu rapariga do campo, não tem vergonha de dizer que passou fome "em muitos momentos", mas jura que nunca se prostituiu. Nem para dar de comer ao filho, que criou sozinha, nem na pior fase da vida - quando saiu da cadeia com uma mão à frente e outra atrás e uma nódoa no cadastro. "A Kikas não sabia nada da noite", recorda. E, além da ignorância profunda ainda tinha uma visão romântica do que era "andar na vida". As próprias raparigas que tinha de orientar e gerir estavam mais preparadas psicologicamente que ela. "Eu pensava que era uma coisa simples. Havia conversa e tinha de haver um clique, elas tinham de gostar do homem para poderem estar com ele, mas não. A vida não é isso", diz. Foi quando lhe apareceu uma quarta rapariga, do nada, que prometeu ensinar-lhe tudo o que precisava de saber para sobreviver num mundo "duríssimo". As raparigas telefonaram a outras raparigas e as empregadas multiplicaram-se. Seis meses depois começaram a chamar-lhe "mãe". O nome ainda hoje se mantém. Para as raparigas, Maria da Conceição é a "mãe Kikas". Para os clientes é a "tia Kikas". Para o resto do mundo é apenas "a Kikas" do La Siesta - figura polémica no Vale de Santarém. Há quem a defenda com unhas e dentes. Há quem a odeie. Outros aprenderam, simplesmente, a respeitá-la. Ou a ignorá-la.
No início tinha "tanta pena" das raparigas que lhes levava todas as manhãs o pequeno-almoço à cama. E chorava a caminho de casa com vergonha do que fazia. Até que a vergonha passou. "Aprendi a ser feliz nesta vida, a amar-me, a ser cínica, a fingir e a não ter complexos. Isto é o que eu sou eu e respeito-me muito", garante.
As raparigas Mesmo assim, e apesar do pulso forte que aprendeu a ter com as raparigas, Kikas continua a não abdicar de certos rituais: ainda lhes apanha a roupa, ainda lhes faz a comida todos os dias. Vai às compras com elas, leva- -as ao médico quando estão doentes, ensina-as a orientarem-se. Das 50 que hoje trabalham no bar dez têm vida dupla e só aparecem aos fins-de-semana. Têm empregos ditos normais, mas precisam de ganhar dinheiro extra. No La Siesta há enfermeiras, psicólogas e até uma médica. A maioria não são portuguesas, "porque a mulher portuguesa tem vergonha e prefere trabalhar nisto no estrangeiro". Algumas só o fazem sazonalmente. Ganham dinheiro rápido, param metade do ano e voltam a aparecer. A mais velha tem 46 anos.
Mas a fama do bar não foi construída graças às mulheres - que vão e vêm, apesar de algumas já trabalharem na casa há cinco anos. O segredo do sucesso é a marca Kikas e foi construído "à base de muita psicologia humana". Maria da Conceição diz que se deu conta de que "as outras casas do ramo eram demasiado tristes". Os homens, as mulheres. "Até as bebidas me pareciam tristes", conta. E então a Kikas percebeu que era preciso criar um espaço "de divertimento". Arranjou um microfone e não há uma única noite em que não esteja no bar, a "animar a coisa" - manda piropos aos clientes, diz palavrões, prega sermões aos que acidentalmente "apalpam as raparigas", inventa e apresenta todos os espectáculos. E diz que criou uma casa onde não se paga a entrada e "onde não é obrigatório pagar copos às raparigas". No mesmo espaço convivem magistrados, deputados, trolhas e ex-presidiários. "Porque todas as pessoas têm qualquer coisa em comum", explica. Há uns anos lembrou-se de aproveitar o alterne para fazer solidariedade. O La Siesta tornou--se conhecido por recolher fundos para ajudar crianças que precisam de tratamentos no estrangeiro ou de cadeiras de rodas. Com os clientes, só numa noite, Maria da Conceição já chegou a angariar 7 mil euros para operar uma criança em Cuba. E para que "não haja dúvidas sobre o destino do dinheiro", pais e crianças aparecem no bar, entre a meia--noite e a uma da manhã, "para que todos os vejam".
Os quartos A Kikas tem uma energia inesgotável. Até às 23h30 trabalha na cozinha do restaurante - que tem tido saída "sobretudo para despedidas de solteiro". Depois despe o avental e veste a roupa da noite - sempre branca, preta ou vermelha - e abre a pista à meia-noite, sempre com o mesmo ritual: o bar é incendiado (literalmente) e, ao microfone, repete a mesma ladainha: avisa logo os presentes de que "quem não tem euros" só vê e, quando muito, "vai para a casa de banho bater uma punheta". Assim, sem mais. O que se segue são espectáculos de strip - aos sábados também há shows masculinos - e as meninas a rodopiar pelo bar, roupa curta e maquilhagem mais ou menos carregada, dispostas a facturar. Facturar é levar os homens a consumir bebidas. No final o lucro é divido ao meio: metade é para a Kikas, a outra metade para as raparigas. Paredes meias com o bar, separados por um pátio com uma piscina imponente, há 37 quartos, arrendados às funcionárias. Cada uma paga uma renda diária de 35 euros - que dá direito a pensão completa e roupa lavada. É a Kikas quem lhes faz a comida e a D. Cristina trata da lavandaria. Então e há prostituição nos quartos?, arriscamo-nos a perguntar. "Isso é a vida íntima delas", responde Maria da Conceição. "O que elas fazem nos quartos é com elas e se se prostituírem não tenho nada a ver com isso, nem ganho nada", garante.
Quem que ser alternadeira O recrutamento das empregadas é bem mais simples do que se possa imaginar. "Qualquer ser humano pode trabalhar na minha casa", diz a Kikas, acrescentando que é mais importante a inteligência e a conversa do que o corpo. "Tive aqui uma senhora com 132 quilos que era a mulher mais desejada da casa", recorda. Tudo porque a maior parte dos clientes não estão interessados em sexo. "Acredite que 98% dos homens querem conversar, sentem-se perdidos e elas acabam por ser psicólogas." Por isso a principal qualidade de uma rapariga "é saber ouvir". E ter alguma esperteza associada. "Ensino-lhes que nunca devem chegar o pé de um cliente e perguntar se quer beber um copo. Devem chegar, saber estar como senhoras, cumprimentar, perguntar o nome, conversar com ele, se ele estiver triste perguntar porquê. Passados 15 minutos devem pedir desculpa e dizer que têm de se ausentar para trabalhar. E aí é que o cliente se oferece para pagar uma bebida, para terem mais um pouco de companhia. É tudo uma questão de psicologia", diz.
Mas a mãe Kikas ensina muito mais às raparigas. Até a gerir o dinheiro. Kikas nunca se descose e não diz quanto tiram por mês. Diz só que "pode ser muito dinheiro e que é dinheiro muito rápido". Primeiro diz-lhes que devem pagar as dívidas que têm. Depois aconselha-as a "fazerem a sua própria casinha e a comprarem um ou dois apartamentos para terem uma fonte de rendimento". Por último, recomenda-lhes que saiam da vida depressa. "Porque isto não é vida para ninguém", garante.
pretty woman Quase todas as mulheres do bar têm filhos. E é por eles que quase todas andam na vida. "Querem pagar as faculdades aos filhos, dar-lhes estabilidade. Outras precisam de dinheiro para comer, operar familiares ou pagar dívidas urgentes." Só uma minoria trabalha por prazer: "Essas são mulheres independentes, que se habituaram a ter um nível de vida muito superior." Todos os meses Kikas perde raparigas, porque encontram "um companheiro" na casa. "Acredite que muitas vezes é mesmo amor e tanto elas como eles nunca tinham tido carinho antes. Estas mulheres, quando saem da vida, tornam-se muito meigas, fiéis e dedicadas", diz. Já os homens que frequentam o La Siesta não poderiam ser mais variados. Há os rapazes novos, que às vezes "nem querem ter nada com as raparigas" e só vêm para sair à noite, há os casados, os viúvos e os divorciados. E alguns idosos "que não têm família, vivem profundamente sós e acabam por passar o Natal connosco".
A Kikas, algumas rugas na cara, diz que não acredita no amor - só no amor entre pais e filhos. Casou aos 21 anos, teve um filho, divorciou-se dois anos depois. Nunca mais voltou a casar. Agora tem um namorado. "Um homem extraordinário", que compreende a vida que leva. E apesar de tudo o que já viu na noite diz que os homens não são tão maus como por vezes os pintam. "Os homens... [silêncio] os homens são seres humanos que têm de mostrar à sociedade que são machões, mas na verdade são mais sensíveis e frágeis do que as mulheres e por isso acabam por sofrer muito." É a rainha da noite quem o diz.
Maria da Conceição. A rapariga ambiciosa que nasceu no campo
Poucas vezes aceitou contar a história da sua vida. Não por medo. Não por vergonha. Simplesmente porque "é um percurso com muitas fases e muita coisa difícil junta". Maria da Conceição, 51 anos, era uma rapariga do campo. O pai trabalhava na companhia das águas, a mãe vendia fruta na praça e a avó tinha uma mercearia. Deram-lhe a alcunha de "Kikas" assim que nasceu, quando a parteira a tomou nos braços e exclamou: "Que coisa tão kikas."
Fez o liceu, era boa aluna, mas queria dinheiro "porque não gostava de pedir nada a ninguém" e sempre foi "muito ambiciosa". Desde sempre que se conhece assim. Foi a ambição que a levou a largar os estudos e a arranjar trabalho.
Empregou-se no escritório de uma sucata, a comercializar peças de automóveis, mas o que encontrou foi um mundo de homens rudes, nada habituados ao convívio com uma mulher no local de trabalho. Enfrentou-os. "Mostrando que não tinha medo. Aprendi a ser tão mal-educada como eles ou mais. Se eles sabiam magoar, eu também podia magoá-los", recorda.
Com 21 anos casou. Dois anos depois de ter o filho, hoje licenciado em Ciências do Ambiente (mas está a trabalhar a tempo inteiro no ginásio e na discoteca do Cartaxo), pediu o divórcio. Não sabe explicar bem porquê. Diz que não sabia nada da vida. Conta que os pais sempre a protegeram muito. E recorda que, além disso, "tinha umas ideias diferentes das da sociedade". O que a Kikas queria era ter um filho e ser mãe solteira - os pais perplexos e a aldeia de Vale da Pedra, a 12 quilómetros de Vale de Santarém, escandalizada com a estranha opção de vida.
Entretanto a sucata vê-se envolvida num grande processo-crime por falsificação de documentos. Kikas foi dentro. Primeiro esteve detida na Judiciária. Depois foi transferida para a prisão de Tires.
"Era ingénua, não sabia nada da vida, aprendi a lidar com a mediocridade, com a falsidade", recorda. Na cadeia, aos 30 anos, encontrou de tudo. Mulheres sozinhas, mulheres inocentes, mulheres que mataram, mulheres que traficavam, mulheres que andavam na vida. Um dia escreveu uma carta a um juiz, indignadíssima, por causa de uma rapariga que estava presa por não ter pago "um simples bilhete de comboio". Cartas para aqui, cartas para ali, e lá conseguiu que a moça fosse libertada. "Na prisão aprende-se que até as pessoas mais perigosas e duras são capazes de chorar."
Quando saiu da cadeia Kikas tinha um filho nos braços. Entretanto perdeu a casa e todos os bens. "Na rua as pessoas mudavam de passeio quando me encontravam, foi a pior fase da minha vida. Não tinha que comer e dormia num pequeno colchão, no chão, com o meu filho ao colo." Foi quando se lembrou de começar a pintar quadros para sobreviver. O negócio - Kikas pinta "sobretudo naturezas-mortas" - virou um sucesso e começo a não ter mãos a medir. Diz que esgotou e teve de parar. Mas ainda arranjou um pé-de-meia, mandou o filho para a faculdade e meteu-se numa sociedade de um restaurante, que durou pouco tempo. "Como era divorciada e ex-presidiária, a mulher do meu sócio meteu na cabeça que tínhamos um caso", conta. Foi quanto bastou para estalar outra polémica em Vale de Santarém. Kikas saiu da sociedade, mas o sócio acusava-a publicamente de lhe ter ficado a dever muito dinheiro. Uma noite pegou num papel do notário - que provava que era o sócio quem lhe devia dinheiro a ela -, fotocopiou-o até à exaustão e, sozinha, espalhou-o pela vila. Vale de Santarém acordou inundada de fotocópias e com a população aos cochichos, na rua. Uns acreditavam nela. Outros insistiam que era mais uma mentira. E Maria da Conceição fez-se à vida outra vez de mãos a abanar. "Nunca mais hei-de ser pisada", jurou. Alugou uma casa "muito pequenina" na vila e abriu um restaurante. Trabalhava 22 horas por dia e dormia em cima da arca frigorífica do restaurante.
Até que um dia, praticamente esgotada com tanto trabalho, disse, por brincadeira, a um homem que costumava almoçar no restaurante, que havia de abrir uma "casa de meninas". Ele chamou-lhe "louca". A verdade é que a mulher que agora é dona de um império até era contra a prostituição, porque no meio de tantos recomeços nunca vendeu o corpo. "Achava que as mulheres que o faziam só podiam ser fracas, porque escolhiam o caminho mais fácil e não lutavam." Mesmo assim, costumava ver algumas mulheres da vida na berma da estrada e ao mesmo tempo achava injusto que aquelas raparigas "não pudessem ter uma casa onde estivessem protegidas e menos expostas". Por coincidência, o homem a quem deixou o desabafo frequentava algumas casas do género e ajudou-a a montar o negócio, há oito anos. Em menos de 48 horas nasceu o La Siesta. Todos os projectos em que se meteu, conta Maria da Conceição, foram criados em "momentos de raiva" e para "provar à sociedade" que era capaz de chegar a algum lado. E quanto mais lhe apontavam o dedo "mais forças ganhava para vencer", admite. A Kikas intimida. Mas também chora.»
in jornal i online, 10-9-2011
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