«O médico de clínica geral, Luís Marçal, 54 anos, vive e trabalha em Salvaterra de Magos. Trocou o serviço nacional de saúde pelo privado e conquistou a qualidade de vida que já ansiava há muito. Tem dois filhos e uma companheira. Gosta de viajar, ler artigos de medicina e acompanhar os canais temáticos de história. Não trocaria a província por uma grande cidade.
- Luís Marçal -
A minha infância foi passada a jogar ao berlinde, ao botão, à apanhada. Nasci em Coimbra onde o meu pai estudava mas vim com um ano de idade para Salvaterra de Magos, onde o meu pai se instalou como médico. As brincadeiras de rua não eram perigosas porque não havia trânsito mas tínhamos que fugir quando vinha o zelador da câmara ou a guarda. Se fossemos apanhados a jogar na via pública éramos multados em 80 escudos e 50 cêntavos, o que era uma fortuna.
Nunca me consegui adaptar ao ambiente de cidade. Prefiro a província apesar das intrigas que florescem em meios pequenos. A luta pela subida na carreira foi uma coisa a que nunca me adaptei. Comecei o internato geral em Lisboa, na Alfredo da Costa. Estive no Pulido Valente e em Santa Maria. Aquele mundo nunca me interessou. Fui fazer saúde pública para Évora. Cheguei a trabalhar no Alandroal. Todas as pessoas nos conheciam. Os nossos hábitos passaram a ser regra. Os velhotes a partir de certa altura começaram a pedir um café e copo de água. Diziam: «se ele pede é porque faz bem».
Com quatro anos de idade pegava no jipe a pedais e dizia que ia visitar os doentes. Contaram-me porque eu não me lembro. A minha ida para medicina deve ter sido influenciada pelo facto de o meu pai ser médico mas não foi uma imposição.
Chateei-me com o meu chefe e deixei o Serviço Nacional de Saúde. Agora estou só no privado. Foi dinheiro que deixou de entrar todos os meses mas não me arrependo. Estou com uma qualidade de vida que não tinha há muitos anos embora com menos capacidade económica. Prefiro a qualidade de vida que tenho ao dinheiro que tinha.
Estou com os meus filhos ao fim de semana de quinze em quinze dias. O poder paternal está atribuído à mãe. Gosto de sair com eles e de dar uns mergulhos na piscina. No Inverno, quando há neve na Serra da Estrela, levo-os até lá. Há uns anos viajei sozinho com eles pelo interior do país. O meu filho mais novo, o Francisco, que se interessa muito por história, disse que nunca tinha visitado tantos castelos. Vou-lhes contando a história dos locais.
Vou a pé para o trabalho. A clínica fica ao pé de casa. Só me desloco de carro quando vou dar consulta fora. Em casa ajudo na decoração, a pôr a mesa e a arrumar roupa. Não passo roupa nem lavo loiça porque felizmente há máquina. Tento que a água da piscina se mantenha límpida, o que às vezes não consigo.
Gosto de ler mas não tenho tempo. Leio sobretudo os artigos de medicina. Gosto de ver televisão nos canais temáticos de história. Gosto de viajar. Adorei visitar Praga. Gostava de lá voltar e de conhecer o Rio de Janeiro, no Brasil.
Se não tivesse deixado de fumar há 19 anos já tinha tido três ou quatro enfartes. Fumava três ou quatro maços por dia. Um amigo teve um aviso sério e assustei-me. Gosto de café. Bebo três ou quatro por dia. Gosto de fazer esparguete à bolonhesa e cogumelos recheados. Adoro ouvir música.
O meu lema de vida está escrito na minha cédula profissional. O bem estar do meu doente será sempre a minha primeira preocupação. É o juramento de Hipócrates. Gosto imenso da minha profissão.
Não vale a pena andar a correr atrás de quimeras. A vida deve ser vivida de forma mais tranquila. Correr para ter um bom carro e uma boa casa? Agora corro pelos meus filhos e pelos meus doentes que têm confiança em mim. Corro por manter a minha auto-estima.
Um amigo meu teve um AVC e dei-me conta de que não o via há dois anos. Moramos a um quilómetro e meio de distância mas andamos nesta vida desgraçada trabalho – casa. Cada qual se fecha na sua concha. Isso não é qualidade de vida. Está internado no hospital. Decidimos que vamos juntar-nos de dois em dois meses para beber um copo.
Vou fazer 55 anos mas a minha perspectiva é chegar aos 150. Digo aos meus doentes, a brincar, que a ideia é chegar aos 120. Eles dizem que é demais. Eu digo-lhes que é limite de velocidade nas auto-estradas. Andar mais do que isso é que já não dá.»
por Ana Santiago, in O Mirante online, 05-5-2011